quarta-feira, dezembro 25, 2019

Permanent record


Autor: Edward Snowden
Género: Biografia, Política
Idioma: Inglês
Duração: 11h e 31min
Editora: Pan MacMillan (Audible)
Ano: 2019

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Permanent record saiu há uns meses, em Setembro. 

O livro em si não precisava de publicidade mas a instauração de um processo contra o autor por violação dos acordos de confidencialidade quando era contratado dos serviços de inteligência norte-americanos, pouco tempo depois da publicação criou um efeito contrário - o efeito streisand -, referido por Snowden aquando de uma entrevista ao Daily Show, criando ainda mais élan

Quando livro saiu, já muito tinha sido escrito e discutido sobre as acções de Snowden, que vive na capital russa desde Junho de 2013. Mas esta é a versão de Snowden, começando pela sua infância nos subúrbios, passando por uma adolescência atribulada com o divórcio dos pais e muitas faltas à escola até à percepção de uma facilidade acima da média em informática, fruto de ser um utilizador intensivo da internet, até à entrada no mundo do trabalho, primeiro como militar e depois como contratado de empresas-fachada para os serviços de inteligência.
 

O livro surge depois de vários documentários e um filme de Oliver Stone, depois de várias entrevistas dadas por Snowden e inúmeros artigos jornalísticos e posts de celebridades e/ou de anónimos, numa amálgama de informação relativa à revelação dos detalhes dos programas de vigilância do governo dos Estados Unidos, onde vários validam a teoria de "big brother is watching" e outros se recusam a acreditar.

Dito isto, a narrativa é bastante credível. Mesmo que haja dúvidas sobre as motivações de Snowden, poucos acreditarão hoje em dia que não existam condições para a existência da chamada vigilância em massa das massas, e que os governos (não apenas o norte-americano) não aproveitem a oportunidade para o fazer - e a tentação existirá, podemos dizer com segurança. 
 
Só este facto é suficiente para nos chamar a atenção e suscitar o debate. É a nossa privacidade, mesmo que não tenhamos "nada a esconder". Qualquer oposição governamental/institucional deverá ser vista com desconfiança e contestada; numa altura em que os políticos têm uma credibilidade quase nula, cabe ao cidadão estar  informado e usar a globalização a seu favor, em vez de permitir que lhe digam o que pensar. 
 
Leitura recomendada.
 
****
(bom)

segunda-feira, novembro 25, 2019

The man who mistook his wife for a hat


Autor: Oliver Sacks
Género: Humor
Idioma: Inglês
Páginas: 242
Editora: Picador UK
Ano: 2007

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Ao longo da sua carreira, o neurologista Oliver Sacks deparou-se com muitos casos clínicos tirados do manual e para os quais estariam prescritos diagnósticos certeiros e tratamentos comprovados. Estes muitos casos não perdiam complexidade por serem frequentes mas dificilmente fariam um profissional da área coçar a cabeça em desorientação. 

O que Sacks relata neste livro foram os casos que o fizeram coçar a cabeça em 25 anos de carreira já somados quando o livro foi editado nos anos 80. 

O livro divide-se em quatro partes: a primeira lida com as perdas/défices da função neurológica, decorrentes de acidentes ou velhice (lesões raras que resultavam em associar pessoas a objectos - ver o título do livro - ou a formas abstractas, o fenómeno de "membros fantasma", a cegueira selectiva e perdas de memória extremas associadas ao álcool e à má nutrição); na segunda parte fala-se de excessos como o síndrome de Taurette (caracterizado por tiques físicos e vocais - um síndrome explorado em alguns filmes de comédia) - e de neurossífilis, que causa alterações na personalidade; a terceira parte relata os estados de "transporte", ditos oníricos e ausências, manifestados em alucinações e numa hiper-memória; e a quarta parte fala do «mundo dos simples», i.e., autistas e deficientes intelectuais.
 

Numa vasta galeria de personagens, destaca-se a forma carinhosa como o neurologista encara os seus pacientes, numa mistura de fascínio e curiosidade, mas também respeito. O autor, falecido em 2015, exerceu em vários hospitais de renome dos EUA e do Reino Unido, mas também em sanatórios, tendo visto pacientes de todas as idades e estratos sociais.

A linguagem do livro é técnica q.b., acessível ao leitor médio. Há várias menções a estudos de outros profissionais da neurologia e a devida reverência aos médicos que primeiramente identificaram as condições narradas (A. Luria, Purdon Martin, Tourette). 

Sacks confessa em várias pequenas notas que o cérebro humano, com os seus 60% de gordura e triliões de conexões neurais, é realmente fascinante, e que nem os profissionais da área conseguem desvendar muitos dos seus segredos. Graças a eles e ao seu extenso trabalho, vemos alguns deles desvelados.
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(bom)

segunda-feira, novembro 11, 2019

Circe


Autor: Madeline Miller
Género: Romance
Idioma: Inglês
Páginas: 333
Editora: Bloomsbury Publishing
Ano: 2019

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Sou fã de mitologia grega desde miúda, por isso Circe não tinha de ser especialmente apelativo para me prender a atenção - o suficiente para comprar o livro sem grande ponderação.

Mas fê-lo desde a primeira página e continuou a fazê-lo até ao fim; a escrita elegante e fluida, rica em descrições, fez-me virar página após página, seduzida pela voz de Circe, mulher que ficou na História como a semi-deusa feiticeira, amante de Ulisses, que transformava em porcos os homens que ancoravam na sua ilha. Madeline Miller dá-nos outra pessoa, menos demonizada.

Filha do deus Hélios, personificação do Sol, e da ninfa Perseis, a jovem Circe não se integra bem no palácio do pai entre os irmãos e os primos, estando sempre à margem. A sua voz "estranha", parecida às dos mortais, e o desinteresse pelas intrigas palacianas, fazem com que não seja procurada pelos seus pares. A mãe, ausente desde cedo, está mais interessada em manter o seu estatuto de favorita do que em investir tempo na educação da prole.

Assim, Circe cresce habituada a auto-entreter-se e a manter-se longe dos olhares alheios, e do falatório, dos que a rodeiam. Pelos seus olhos, vemos como os deuses podem ser caprichosos e cruéis. Neste aspecto, gostei especialmente das cenas com Prometeus. 

Décadas mais tarde, Circe é exilada para a ilha de Eana, uma gaiola dourada onde é rapidamente esquecida pelos outros deuses. Aqui, torna-se especialista em venenos e drogas, solidificando a figura que ficou para a posteridade e que é associada com Atena, Cila, Medéia, Pasífae, Dédalo. Na ilha, é visitada por Hermes regularmente, e as interações entre os dois são dos capítulos mais interessantes do livro. Em Eana, Circe aprende o que é o amor, a violência, a perda, a saudade, e os seus limites. A autora conta-nos uma história de maturidade e de aceitação que se desenrola ao longo de vários séculos (um luxo exclusivo de deuses e semi-deuses).

A escrita é elegante, com passagens muito bem conseguidas. A voz de Circe é cândida, sincera no relato das suas falhas e das suas lutas. Gostei bastante, acho que Miller escreve muito bem; espero ler o Canto de Aquiles em breve.
 
Adenda 30/03/2023: O livro foi publicado em Portugal pela Minotauro com o título Circe; saiu em Setembro de 2020, depois deste apontamento.

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(bom)
 

sexta-feira, novembro 01, 2019

Siege: Trump under fire


Autor: Michael Wolff
Género: Política
Idioma: Inglês
Páginas: 352
Editora: Henry Holt & Company
Ano: 2019

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«Trump needed to surround himself with the dysfunctional and the inept, because he was dysfunctional and inept.»

Nos últimos dias, fala-se mais do que nunca de uma possível destituição (impeachment) de Donald Trump, no seguimento do escândalo surgido de Trump ter alegadamente pedido ao presidente ucraniano para investigar o filho de um opositor político, Joe Biden (VP durante os mandatos de B. Obama). 

Para além dos milhares de artigos, posts, tweets que se têm escritos sobre a actual presidência norte-americana, houve alguns livros a serem publicados, e dois dos que causaram mais sururu foram escritos por Michael Wolff. 

Em Siege: Trump under fire, são descritas várias situações que terão ocorrido entre o início do segundo ano da presidência de Donald Trump e a entrega do relatório de Mueller, em Março deste ano. A viagem aos bastidores da Casa Branca lê-se como um folhetim, descrevendo Trump como um narcisista com um défice de atenção gritante e um grau de inteligência abaixo do expectável de um homem na sua posição.

Há passagens arrepiantes e outras caricatas, um sentimento de incredulidade que nos força a pousar o livro de lado de vez em quando, mas a curiosidade vence sempre - estamos a falar de um dos homens mais poderosos do mundo, nomeadamente o homem que tem os códigos do arsenal nuclear mais portentoso do mundo ocidental. Homem esse que é descrito como tendo a mentalidade de uma criança de doze anos, que dá alcunhas ao seu pessoal de acordo com a aparência física de cada um (baixo, gordo, tem um bigode «ridículo») e tenta seduzir qualquer mulher atraente que entre no seu campo de visão.

Alegadamente, ex-colaboradores e outras fontes «fidedignas» contaram/confirmaram ao autor tudo o que é narrado no livro, por isso quando lemos sobre Trump, de pijama, a jantar o habitual cheeseburger na suite presidencial enquanto palra ao telefone non-stop sobre assuntos de Estado com amigos e conhecidos, ou sobre os seus comentários pouco felizes em reuniões e grupos de trabalho, a imagem de um fanfarrão vaidoso e cheio de si  que se forma é supostamente a realidade.

Página após página, conhecemos pormenores sobre o caso Jamal Kashoggi, o poder de Bannon, a visita de Trump ao Reino Unido, a sua relação com a família, o nepotismo reinante na Casa Branca (onde a filha e o genro do Presidente são especialmente visados), num desfile incrível de histórias caricatas e bizarras.

Perguntei-me várias vezes se isto poderia ser verdade, e alguns jornalistas que leram o livro escreveram artigos - disponíveis online - onde descrevem que a maioria do que é dito teria sido corroborado por fontes independentes (vale o que vale). Muito triste.

O contéudo de Siege: Trump under fire parece, por vezes, ser mau demais para ser real. Que o candidato que defendia a construção de um muro na fronteira dos EUA com o México para impedir a imigração ilegal, e que, pautando as suas ideias com um discurso racista, tenha ganho já parecia material saído de uma série de televisão ou de um livro sobre uma realidade distópica, mas ler sobre a inaptidão gritante de Trump ao leme de um dos países mais poderosos do mundo sem qualquer ensejo de saber mais, de se aperfeiçoar, é estar a assistir de cadeirinha ao fim da democracia como a conhecemos. Paralelamente, surge o homem de negócios habituado a explorar qualquer vantagem que surja, teoricamente com um aparelho estatal ao seu serviço para o fazer. 

Aguardam-se novos episódios em breve, o mais tardar em 2020. Entretanto, o autor deste livro - na lista dos bestsellers semanas consecutivas - já assegurou uma reforma dourada; é o american dream.
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(mediano/razoável)

domingo, setembro 29, 2019

In a dark, dark wood


Autor: Ruth Ware
Género: Thriller
Idioma: Inglês
Páginas: 339
Editora: Vintage Digital (Kindle)
Ano: 2015

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«And in the dark, dark house there was a dark, dark room...»

Este é o segundo livro que leio de Ruth Ware e mais uma vez não me convenceu. 

À semelhança do primeiro que li, The woman in cabin 10, foi a sinopse que me atraiu mas no final fiquei desiludida. 

A história deste thriller: Lenora (Nora) Shaw é convidada para a despedida de solteira de Clare, que já não vê há anos, nomeadamente desde o liceu, quando andavam sempre juntas. Quem está a organizar tudo é Flo, a (actual) melhor amiga de Clare, sendo o cenário uma casa de campo isolada. Lenora acede a ir porque uma outra amiga comum também vai, mas rapidamente se arrepende. E à medida que o desconforto aumenta com algumas perguntas incómodas acerca dos tempos do liceu e Flo revela que actividades planeou para o fim de semana, Nora percebe que quer ir-se embora antes de tempo.

Mas algo inesperado acontece e Nora acorda numa cama de hospital, amnésica... até se lembrar que alguém morreu na noite em que decidiu partir. E a polícia que a veio interrogar espera respostas...

Já li thrillers muito bons - é dos meus géneros de eleição -; este não fica na memória.
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(mediano/razoável)

sexta-feira, setembro 06, 2019

Becoming




Autor: Michelle Obama
Género: Biografia
Idioma: Inglês
Duração: 19h e 3m
Editora: Random House Audio (Audible)
Ano: 2018


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Habitualmente não leio biografias, não por aversão ou por não gostar, mas porque há sempre outros livros que me prendem mais a atenção.

Mas das poucas que li até hoje, a maioria foi de mulheres (Mata-Hari, Isabel I, Elizabeth Báthory, Anne Frank), figuras que se destacaram pela sua força de carácter e por romperem barreiras sociais/políticas/de género.
Michelle Obama é obviamente uma figura mais pequena - não necessariamente menor - ao lado das figuras históricas acima mencionadas mas a sua postura como Primeira-Dama dos Estados Unidos ganhou-lhe o respeito e reconhecimento de milhões de pessoas em todo o mundo, e cimentou-a como exemplo para todos.

Becoming é o seu testemunho, num discurso simples e articulado, um relato na 1.ª pessoa de uma menina que cresceu em Chicago, no seio de uma família humilde, cujos pais sempre incentivaram a estudar, a ser uma boa cidadã e a trabalhar para alcançar a estabilidade. O objectivo nunca foi a fama, foi a de ter uma vida melhor do que a deles - algo universal para todos os pais.

Pela voz Michelle Obama, vamos assistindo a vários episódios onde familiares e amigos se juntam para educarem os filhos (negros) para uma nova sociedade, mais aberta à diferença mas não necessariamente mais justa para as pessoas de cor. Mas Michelle chega a Princeton, a uma sociedade de advogados e vê-se na Casa Branca após décadas de dedicação dos seus pais em providenciar-lhe uma vida digna.

Segundo ela, nunca quis a ribalta nem a vida política mas quando casou com Barack Obama e percebeu que ele queria fazer a diferença através do poder executivo e legislativo, e acreditando nos valores e missão de um idealista, acabou por aceitar e juntar-se à luta para o alcançar, movida pelo amor. A sua única condição foi de que as filhas tivessem uma vida o mais normal possível. 

Ouvir o livro pela voz da autora foi um bónus, onde percebemos a entoação mais emocional de algumas cenas. Por outro lado, ocorreu-me de vez em quando quantas daquelas palavras não teriam sido escritas pelo ghost writer e quanto de Michelle Obama haveria efectivamente no livro. Também me ocorreu quanto foi omitido para manter a aura de  respeitabilidade do casal mas menos não se pode esperar de uma biografia oficial; o mundo da política não permite ver o mundo com lentes cor-de-rosa.

A forma como Barack é retratado é como se de um super-herói se tratasse, o que não admira visto que Michelle menciona várias vezes o amor que sente por ele e como o admira como pai e marido. A mãe de Michelle é um pilar de força e tem uma justa homenagem - este livro é sobretudo um tributo a ela e ao marido (que morreu há vários anos, depois de anos a lutar contra a esclerose múltipla).

No final, comprova-se a imagem que se tem de Michelle Obama: uma personalidade séria, uma pessoa digna e respeitável que procurou ser activa no seu papel como Primeira-Dama, não querendo ofuscar o marido mas não querendo ser apenas um bibelot, usando o seu carisma, beleza e inteligência como armas e canalizando-as para servir os cidadãos. 

A sua paixão por uma vida saudável e pela educação ajudaram milhares de americanos a melhorarem a sua situação a partir de programas criados na era da presidência Obama, e os Obama foram sem dúvida um casal que usou a sua posição para fazer o bem a muitos, algo que percebemos melhor agora com o ocupante actual da presidência dos EUA.

No final das 19 horas de escuta, fica a sensação de ter conhecido uma mulher forte, com um sólido sistema de valores, que alcançou o cume através do trabalho e que fez o melhor que pôde (e foi muito). Michelle Obama é uma inspiração e uma mulher muito equilibrada, rara na sua ponderação e bom senso. Infelizmente, diz que nunca se candidatará à Casa Branca, o que é pena; os EUA só teriam a lucrar se os Obama voltassem a ocupá-la. 
«I was humbled and excited to be First Lady, but not for one second did I think I'd be sliding into some glamorous, easy role. Nobody who has the words 'first' and 'black' attached to them ever would. I stood at the foot of the mountain, knowing I'd need to climb my way into favor.»
*****
(muito bom)

domingo, agosto 18, 2019

Headscarves and hymens: why the Middle East needs a sexual revolution


Autor: Mona Eltahawy
Género: Religião; Sociedade
Idioma: Inglês
Páginas: 240
Editora: Farrar, Straus and Giroux
Ano: 2015
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«The most subversive thing a woman can do is talk about her life as if it really matters.»
Desde a adolescência que leio relatos pessoais de mulheres que tiveram o infortúnio de nascer e crescer em sociedades opressivas: a série Sultana (Ed. Asa),  Blasfémia, Queimada vivaFlor do deserto. 

Esta é mais uma leitura desse género. Numa compilação de horrores, a autora, uma jornalista egípcia com colaborações com o New York Times, Washington Post e Miami Herald, relata várias situações que ocorrem no Médio Oriente e norte de África - Iémen, Egipto, Arábia Saudita -, com várias notas referentes aos regimes legais em vigor que fragilizam a condição feminina e onde a igualdade de género continua uma miragem.

«Why do those men hate us? They hate us because they need us, they fear us, they understand how much control it takes to keep us in line, to keep us good girls with our hymens intact until it’s time for them to fuck us into mothers who raise future generations of misogynists to forever fuel their patriarchy.»

Há várias organizações não-governamentais que se certificam que nada permanece oculto e isso faz a diferença no mundo global em que vivemos e numa era em que através das redes sociais se podem denunciar situações bárbaras e inumanas mas sem seguimento nada muda - os aparelhos políticos destes países são dominados por homens, incluindo líderes religiosos que alimentam o temor divino, e as mulheres que chegam ao poder são silenciadas ou empossadas para fazer número.
 
O mundo ocidental, mantendo os seus interesses nesses países - a nível de recursos energéticos -, nada acrescenta à narrativa, as visitas diplomáticas pontuadas por frases vazias e indiferentes ao sofrimento de milhões de mulheres e raparigas.
«The battles over women's bodies can be won only by a revolution of the mind
O Médio Oriente precisa de uma revolução sexual? Há décadas. A obsessão com a virgindade feminina e os vários tabus associados com a imagem imaculada que associam ao sexo feminino agrilhoam metade da população destes países, onde os códigos penais preenchem as lacunas recorrendo ao Corão, originando aberrações como o facto de um violador poder ser ilibado se aceitar casar com a vítima, o que acontece em mais de 90% dos casos reportados e consequentemente julgados. Digno da Quinta dimensão.

A autora conta-nos ainda a sua luta pessoal em aceitar o seu corpo, o uso do véu, a descoberta de como expressar a sua sexualidade, acrescentando testemunhos de outras mulheres recolhidos em grupos de apoio e fóruns organizados por associações de defesa dos direitos das mulheres ao longo dos anos. 

Mona Eltahawy é uma escritora e jornalista que vive no Egipto e nos EUA, onde adquiriu a cidadania em 2011. O seu activismo centra-se em denunciar a misoginia e descriminação das mulheres no mundo árabe, descrevendo-se como uma «muçulmana feminista radical». Participante activa do movimento Mosque Me Too (#mosquemetoo), que denuncia o abuso sexual sofrido pelas muçulmanas durante o Haji - a peregrinação a Meca -, relatou a sua própria experiência de assédio quando tinha 15 anos; é bastante activa nas redes sociais, dando voz a milhares de mulheres.

«The god of virginity is popular in the Arab world. It doesn’t matter if you’re a person of faith or an atheist, Muslim or Christian—everybody worships the god of virginity. Everything possible is done to keep the hymen—that most fragile foundation upon which the god of virginity sits—intact. At the altar of the god of virginity, we sacrifice not only our girls’ bodily integrity and right to pleasure but also their right to justice in the face of sexual violation. Sometimes we even sacrifice their lives: in the name of “honor,” some families murder their daughters to keep the god of virginity appeased. When that happens, it leaves one vulnerable to the wonderful temptation of imagining a world where girls and women are more than hymens.»

Headscarves and hymens: why the Middle East needs a sexual revolution é uma leitura dolorosa. Ser mulher em qualquer época é um desafio mas nascer num destes países é definitivamente ser vítima de um karma tramado. Fechamos o livro com o coração pesado mas com vontade de fazer alguma coisa; pode ser um simples donativo às várias ONG envolvidas na luta, voluntariado ou promoção de eventos. Pode ser comprar este livro e fazê-lo circular ou oferecê-lo a um amigo ou amiga. Há que manter a mensagem viva e dar voz às mulheres que ainda são tratadas como cidadãos de 2.ª classe ou como coisas.

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(muito bom)

domingo, agosto 04, 2019

I’ll Be Gone in the Dark - one woman’s obsessive search for the Golden State Killer




Autor: Michelle McNamara
Género: True crime
Idioma: Inglês
Duração: 10h e 13m
Editora: HarperAudio (Audible)
Ano: 2018
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Nunca tinha ouvido falar de Michelle McNamara.

Jornalista e escritora do género true crime (relatos verídicos de crimes investigados pelas autoridades), falecida em 2016 durante o sono, foi casada com o actor/comediante Patton Oswalt.

Nas próprias palavras da autora, desde a adolescência que era obcecada por histórias de crime; há alguns anos que mantinha um blog acerca de casos arquivados, com uma vasta comunidade de detectives amadores (armchair sleuths) e uma extensa troca de comentários. Foi aí que nasceu a ideia de pegar na compilação exaustiva de informação que acumulara e escrever este livro sobre os crimes do East Area Rapist/Original Night Stalker (EAR/ONS), um violador e assassino em série activo nas décadas de 70 e 80 - McNamara “rebaptizou-o” como Golden State Killer (GSK).

Ao longo dos vários capítulos, vai sendo descrito o modus operandi do criminoso, e como passou do furto ao roubo com violação, até ao homicídio premeditado de casais, com vários sinais de violência, numa escalada sombria de violência e crueldade que sempre confundiu as autoridades policiais – o indivíduo atacou em estados diferentes dos EUA durante períodos distintos.

I’ll Be Gone in the Dark é o trabalho de uma vida: um livro pesado, repleto de pormenores macabros e cronologias desafiantes. McNamara fez um trabalho de pesquisa exaustivo (o subtítulo é mais do que apropriado) e o livro foi terminado postumamente recorrendo aos arquivos minuciosos da autora e a capítulos parcialmente iniciados; foi publicado no início de 2018. 

Não sendo o meu género de eleição, foi uma excelente incursão pelo true crime. O formato audiolivro (Audible) foi uma boa aposta e ajudou a expandir o vocabulário forense em inglês.

Uma nota para o capítulo final: soberbo. 

O epílogo, narrado pelo viúvo, Oswalt, confirma o carácter de Michelle e a sua devoção pelo tema, movida pela paixão de que se fizesse luz sobre este mistério. 

Em 2018, dois meses após a publicação do livro, foi detido um suspeito, o qual foi posteriormente acusado de alguns crimes de homicídio (os de violação já prescreveram) atribuídos ao EAR/ONS ou GSK. É arrepiante ver como o perfil traçado pelas equipas de investigação envolvidas – e compilado pela autora - encaixa que nem uma luva: ex-militar, ex-polícia, conhecimentos de procedimentos e investigação criminal, residente nas áreas afectadas. Curiosamente, as autoridade anunciaram que a captura do suspeito não teve qualquer relação com a saída do livro - uma afirmação infeliz e em que pouca gente deve acreditar.

Esperemos que a justiça (possível) seja feita.

*****
(muito bom)

domingo, julho 21, 2019

Lock every door


Autor: Riley Sager
Género: Thriller
Idioma: Inglês
Páginas: 384
Editora: Dutton (Kindle)
Ano: 2019
ASIN: B07J4719TX
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Sou uma fã de Riley Sager desde a sua estreia com Final girls, cujos direitos para adaptação ao cinema foram adquiridos pela Universal Pictures no mesmo ano em que foi publicado. Assim que saiu o seu segundo livro, The last time I lied, li-o também de uma assentada.

Previsivelmente, assim que este livro ficou disponível no início de Julho, "devorei-o", confirmando Sager como um dos meus autores favoritos de thrillers. Três livros e vibrei com todos.

Se o primeiro livro de Sager apelava à figura da "final girl" dos filmes de terror - dos quais sou uma fã confessa -, este Lock every door vai um pouco mais ao pormenor desse imaginário de horror, com nuances da história d'A semente do diabo, o filme-ícone de Roman Polanski, e um ambiente hitchcockiano; com uma fórmula desta, o que pode falhar?!

Jules Larsen, recém-desempregada e sem namorado, vê cair-lhe no colo uma oportunidade dourada: é contratada para tomar conta de um apartamento numa das zonas mais exclusivas de Manhattan, com uma vista desafogada para o Central Park. O salário é bom e a tarefa é ideal para alguém que precisa de se reorganizar e procurar um emprego na metrópole que nunca dorme. O contrato é para três meses, enquanto os herdeiros do apartamento organizam a mudança. Entretanto, as regras do condomínio têm de ser respeitadas, e é aí que surge a necessidade dos apartamentos não estarem desocupados. No Bartholomew, tudo é opulento: a arquitectura, os moradores, as rendas; e as regras reflectem a exclusividade do edifício.

E são várias as regras. As visitas por pessoas externas são interditas. O empregado deverá pernoitar sempre no apartamento. Não se devem incomodar os outros moradores (a maioria celebridades). Jules diz que sim a tudo, movida pela necessidade e falta de opções - o que é uma mão cheia de regras comparadas com o cenário de continuar a dormir no sofá da sala da melhor amiga e contar tostões para sobreviver?

Nos seus primeiros dias, Jules conhece outra apartment-sitter, Ingrid, que lhe confidencia que o Bartholomew não é o que parece e que a fachada gótica imponente esconde uma história arrepiante de homicídios e suicídios. Jules não dá grande crédito a estas superstições... até ao dia seguinte, quando Ingrid desaparece.

E é ao tentar descobrir o paradeiro de Ingrid que mergulha no passado sombrio do edifício, numa sucessão de capítulos férteis em revelações e alguns sustos. Jules vai descobrir que o que parece bom demais para ser verdade, é-o efectivamente, e que ela própria poderá estar em risco.

Pelo caminho, a história desenrola-se num misto de sobressaltos e alguns arrepios. Algumas personagens, e as suas intenções, são algo óbvias desde o início mas isso não diminui em nada o ritmo da estória.


Já perto do fim, estando embalados e dispostos a apostar no final, surge uma reviravolta inesperada; Riley Sager não desilude.



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(muito bom)