20 de novembro de 2024

10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho



Autor: Elif Shafak
Género: Romance, Contemporâneo
Idioma: Português
Páginas: 328
Editora: Editorial Presença
Ano: 2020
Título original: 10 minutes and 38 seconds in this strange world
Tradução: Maria João Freire de Andrade

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A nossa vida passa-nos à frente dos olhos no momento da nossa morte…

É desta ideia que parte a história de 10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho, da escritora turco-britânica Elif Shafak. Descobri-a recentemente, com o romance Três Filhas de Eva - podem ler o meu apontamento aqui.

10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho abre com Leila Tequila, uma prostituta na cidade de Istambul, ferida mortalmente e deixada num contentor de lixo.

O seu cérebro, prestes a extinguir-se, passa em retrospectiva a existência do corpo que habita. Ficamos a conhecer a vida de Leila como ela a experienciou: a sua vida familiar, as suas amizades, os eventos marcantes, os abusos, os azares, com mostras da condição feminina na Turquia nos anos 50 a 90.

O romance divide-se em três partes, e tem uma estrutura original para uma história de flashbacks, que funciona muito bem.

Aprendemos também sobre a vida dos seus cinco melhores amigos, onde o último terço do romance se foca. São amigos generosos e leais, que se tornaram a família de Leila. Elif Shafak criou neles personagens ecléticas e cheias de vida.

A leitura é muito agradável, graças à escrita poética e estruturada. Gostei dos elementos de fantasia aliados ao realismo social, com a presença de acontecimentos históricos, caso do massacre do 1.º de maio de 1977 na Praça Taksim.

A cidade de Istambul está muito presente, como no romance Três Filhas de Eva. Nota-se uma tónica e compreensão profundas do local e das suas complexidades culturais.

10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho foi nomeado para o "Booker Prize" em 2019, que foi ganho ex aequo por The Testaments de Margaret Atwood, e por Rapariga, Mulher, Outra de Bernardine Evaristo – podem ler o meu apontamento aqui.

«O tempo tornou-se fluido, um fluxo rápido de recordações infiltrando-se umas nas outras, o passado e o presente inseparáveis.
A primeira recordação que lhe veio à mente relacionava-se com sal – a sensação na sua pele e o sabor na sua língua. Viu-se em bebé – nua, viscosa e vermelha.»

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(muito bom)

4 de novembro de 2024

So late in the day

 



Autor: Claire Keegan
Género: Conto
, Contemporâneo
Idioma: Inglês

Páginas: 43

Editora: Faber & Faber
(Kindle)
Ano: 2023

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Claire Keegan nasceu em Wicklow, na Irlanda, em 1968.  

Os seus contos apareceram na The New Yorker, Granta, The Paris Review e na Best American Short Stories. Entre as distinções que recebeu, contam-se o Rooney Prize, o William Trevor Prize e o Davy Byrnes Short Story Award.

So late in the day começa com Cathal, o protagonista, a sair do trabalho e a pensar no que vai fazer no fim-de-semana. Uma interação banal leva-o a recordar Sabine, a mulher com quem poderia ter passado a vida.

Cathal parece alheio à sua falta de generosidade, misoginia e insensibilidade. Claire Keegan revela-as gradualmente, numa escrita simples e crua, por vezes delicada.

So late in the day tem uma mensagem forte e que levanta inúmeras questões acerca de relacionamentos e das expectativas que os amantes têm. É um conto mordaz e rico em nuances.

Claire Keegan tornou-se uma das minhas contistas favoritas.

Este conto está editado em Portugal pela Relógio D’Água, integrando uma colecção de três histórias, intitulada A uma hora tão tardia – histórias de mulheres e homens.

«You know what is at the heart of misogyny? When it comes down to it? It’s simply about not giving, she said.»

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(bom)

13 de outubro de 2024

O Jantar

 

Autor: Herman Koch
Género: Thriller
, Contemporâneo
Idioma: Português

Páginas: 304

Editora: Alfaguara

Ano: 2015
Título original:
Het diner

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Há limite quando se trata de proteger um filho?

Dois casais saem para jantar num restaurante exclusivo. Conversam sobre trivialidades antes de abordarem o que os levou ali: o futuro dos seus filhos. Os jovens em questão, Michel e Rick, cometeram um crime hediondo no regresso de uma festa. Há imagens de vídeo, mas a qualidade e ângulos não permitem identificar os autores. Mas os pais sabem.

O narrador d’O Jantar é Paul Lohman, o pai de Michel. Paul quer proteger o filho a todo o custo.

Serge é o pai de Rick, e o irmão de Paul. De acordo com as últimas sondagens, Serge Lohman será o novo primeiro-ministro dos Países Baixos dentro de alguns meses.

No restaurante, entre os salamaleques dos empregados e a apresentação detalhada da comida, a tensão entre os quatro adultos é palpável desde o início.

A voz narrativa de Paul, que nunca sai do registo sarcástico, desvenda cada vez mais à medida que a acção avança, falando de si e do lar que criou com a mulher, Claire.

O Jantar é sobre família, violência, realidade, ilusão. Começa por prender-nos pela empatia e vai ficando pesado e opressivo. O final surpreende. É um livro que fica connosco, muito depois de o lermos.

É o melhor livro que li este ano.

O autor, o holandês Herman Koch, nasceu em 1953. Estudou Russo e viveu na Finlândia durante alguns anos, até se mudar para Amsterdão, onde é produtor televisivo e escritor.

Koch teve a ideia de escrever o livro depois de ler uma notícia sobre o homicídio de uma sem-abrigo em Barcelona.

O Jantar foi adaptado ao cinema três vezes, na Holanda, Estados Unidos e Itália. Nunca vi nenhuma das adaptações - a versão norte-americana conta com Richard Gere, Laura Linney e Rebecca Hall nos principais papéis.

«Como teria sido esta noite se eu, uma hora antes, tivesse permanecido no piso térreo a fazer horas até ir para o restaurante, em vez de subir as escadas até ao quarto do Michel? Como teria sido, nesse caso, o resto das nossas vidas?
Será que o cheiro a felicidade que eu agora aspirava do cabelo da minha mulher continuaria a ser de felicidade e não, como agora, de memória de um passado longínquo - como o aroma de algo que se pode perder de um segundo para o outro?»

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(fenomenal)

23 de setembro de 2024

Conclave

 


Autor: Robert Harris
Género: Thriller

Idioma: Português

Páginas: 272

Editora: Editorial Presença

Ano: 2018

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Conclave é o primeiro livro que leio de Robert Harris, autor britânico bestseller e considerado um dos grandes escritores de ficção histórica (Pompeia; trilogia Cícero).

A acção abre com a morte do Papa actual, baseado, alegadamente, no presente papa (Francisco, eleito em 2013) devido ao perfil reformista e negação da pompa e circunstância.

Assistimos, então, à organização do conclave para eleger um novo papa, que junta 118 cardeais de todo o mundo católico, liderados pelo Cardeal Jacopo Lomeli.

Há uma breve descrição de alguns deles, sendo que nem todos têm igual protagonismo. O cardeal-patriarca de Lisboa, por exemplo, tem apenas um par de falas e é (d)escrito como uma figura discreta e amante de charutos.

Num período de 72 horas, limitados a uma área traseira da Cidade do Vaticano, entre a Capela Sistina (sítio de discussão e voto) e a Casa Santa Marta (alojamento), o livro imagina o processo secreto, numa trama bem tecida sobre as maquinações de poder no topo da Igreja Católica Romana.

No início, há quatro favoritos ao cargo: o canadiano Tremblay, mediático e bem falante; o nigeriano Adeyemi, que representa a diversidade mas tem uma atitude crítica para com a homossexualidade; o italiano Tedesco, um ultra-conservador que defende o regresso do latim à liturgia; e o italiano Bellini, um intelectual reformista. Cada um tem os seus apoiantes e as suas falhas.

Mas há surpresas, com alguns candidatos inesperados a serem votados, o que aumenta a tensão. Paralelamente, o Cardeal Lomeli descobre que o ex-papa, antes de morrer, investigava alguns cardeais cuja conduta era censurável (e até criminosa).

À medida que lemos, vemos as tentações humanas a serem expostas. O próprio protagonista tem de lutar com as suas próprias ambições e expectativas.

Conclave está repleto de detalhes processuais e históricos, desde as regras da Constituição Apostólica aos rituais em torno da votação e aos edifícios onde se passa a acção. O trabalho de pesquisa do autor é evidente, confirmado pelos vários títulos citados no fim do livro, na parte dos agradecimentos.

Robert Harris soube ainda situar a história no mundo actual, na forma como a Igreja gere a publicidade do evento e toma o pulso aos movimentos políticos e sociais.

O desfecho é surpreendente e provocador, incorporando a conversa cultural do mundo em que vivemos. Eu gostei, embora pareça ser um final que não reúne consenso entre leitores.

Harris escreveu um livro inteligente e emocionante, com um domínio inegável do género thriller.

Conclave foi, entretanto, adaptado ao grande ecrã, com estreia prevista na Europa no fim do ano [2024]. Com Ralph Fiennes como protagonista, e um elenco de actores conceituados ao seu lado (John Lithgow, Stanley Tucci, Isabella Rossellini), já está na minha lista de filmes a ver.

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(muito bom)